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A mudança do clima já está causando danos à saúde das crianças em todo o mundo e deve impactar o bem-estar de uma geração inteira se não atingirmos as metas do Acordo de Paris para conter o aquecimento global em níveis bem abaixo dos 2oC, aponta um novo relatório publicado pela revista médica The Lancet.

O relatório The Lancet Countdown on Health and Climate Change é uma análise anual abrangente que registra o progresso em 41 indicadores-chave de saúde, demonstrando como cada ação para cumprir as metas do Acordo de Paris contribui também para a melhoria da saúde humana. O projeto é fruto de colaboração entre 120 especialistas de 35 instituições, incluindo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Banco Mundial, a University College London e a Universidade de Tsinghua.

Danos da mudança do clima

“No passado, o Brasil era reconhecido como líder mundial no combate à destruição ambiental. Hoje, o progresso observado no país é limitado e os danos extensos à saúde causados pela mudança do clima estão ocorrendo mais rápido do que o governo é capaz ou está disposto a responder”, diz a Dra. Mayara Floss, médica residente de atenção familiar em Porto Alegre (RS).

A médica ressalta que secas longas, chuvas excessivas e incêndios descontrolados estão aumentando a pressão sobre a saúde. Impulsionado em parte pela mudança do clima, o aumento contínuo da dengue pode logo se tornar incontrolável, com as incidências triplicando desde 2014. “Lamentavelmente, o desmatamento de florestas maduras está aumentando novamente e o uso do carvão está crescendo. Não devemos desperdiçar o sucesso que obtivemos no passado com tanto custo nessa área”, observa.

Para que o mundo atinja seus objetivos climáticos, conforme proposto no Acordo de Paris, e proteja a saúde das próximas gerações, o panorama energético global precisa mudar drasticamente e o quanto antes, alerta o relatório. Nada menos do que um corte anual de 7,4% nas emissões de CO2 entre 2019 e 2050 limitará o aquecimento global à meta mais ambiciosa de 1,5oC.

Destaques sobre o Brasil

  • À medida que a temperatura sobe, as crianças sofrerão o maior impacto em termos de desnutrição e elevação no preço dos alimentos – o potencial de rendimento médio da soja diminuiu quase 4% no Brasil desde os anos 1960.
  • As crianças serão as que mais sofrerão com o aumento de doenças infecciosas – a capacidade de apenas um tipo de mosquito de transmitir dengue no Brasil aumentou 11% desde a década de 1950, como resultado da mudança do clima.
  • Ao longo da adolescência, o impacto da poluição do ar pode piorar – a oferta total de energia proveniente do carvão triplicou no Brasil nos últimos 40 anos; e níveis perigosos de poluição do ar externo (PM2,5) contribuíram para 24 mil mortes prematuras em 2016.
  • Eventos climáticos extremos se intensificarão na vida adulta, com o Brasil tendo cerca de 1,6 milhão de pessoas a mais expostas a incêndios desde 2001-2004.

Impactos na saúde ao longo da vida no cenário business-as-usual

Se continuarmos seguindo o caminho do business-as-usual, com altas emissões de carbono, e a mudança do clima continuar no ritmo atual [1], uma criança nascida hoje enfrentará um mundo em média 4ºC mais quente no seu 71º aniversário, ameaçando sua saúde em todas as fases de sua vida.

“As crianças são particularmente mais vulneráveis a riscos de saúde em um planeta com o clima sob transformação. Seus organismos e sistemas imunológicos ainda estão se desenvolvendo, deixando-as mais suscetíveis a doenças e poluentes ambientais”, explica Dr. Nick Watts, diretor-executivo do The Lancet Countdown.

Segundo ele, o dano ocorrido no começo da infância é persistente e pervasivo, com consequências para a saúde que duram a vida toda. “Se não tomarmos medidas imediatas em todos os países para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, os ganhos que tivemos recentemente com bem-estar e expectativa de vida podem ser comprometidos, e a mudança do clima pode definir a saúde de uma geração inteira”, atenta.

Crianças serão as mais afetadas pelas perdas agrícolas

À medida que a temperatura sobe, as colheitas vão diminuir, ameaçando a segurança alimentar e elevando o preço dos alimentos. Quando o preço dos grãos disparou em 2007-2008, por exemplo, os preços do pão no Egito aumentaram 37%. Nos últimos 30 anos, houve queda no potencial de produção global de milho (-4%), trigo (-6%) e soja (-4%). Os bebês e as crianças pequenas são os mais afetados pela desnutrição e pelos problemas de saúde conexos, como crescimento retardado, sistemas imunológicos fracos e problemas de desenvolvimento a longo prazo.

O impacto de epidemias perigosas será mais mortal nas crianças

As crianças serão particularmente suscetíveis às doenças infecciosas que se intensificarão nos próximos anos por causa da mudança do clima. Nos últimos 30 anos, o número de dias climaticamente suscetíveis à bactéria Vibrio (que causa muitas das doenças de diarreia no mundo) dobraram.

De modo similar, as mudanças nos padrões climáticos estão criando ambientes favoráveis à bactéria Vibrio cholerae, sendo que a incidência dela aumentou quase 10% desde os anos 1980, o que eleva a probabilidade de surtos de cólera em países onde a doença não ocorre regularmente.

Estimulada pela mudança do clima, a dengue é a doença viral transmitida por mosquito que mais se dissemina no mundo hoje. Nove dos 10 anos com maior ocorrência dessa doença aconteceram depois de 2000. Cerca de metade da população global vive hoje em áreas suscetíveis à dengue.

A qualidade do ar vai piorar, o que causará mais danos à saúde cardíaca e pulmonar

Desde a adolescência até a vida adulta, uma criança nascida hoje irá respirar mais ar tóxico, causado pela queima de combustível fóssil e piorado pelas temperaturas em alta. Isso é especialmente danoso para os mais jovens, já que seus pulmões ainda estão em desenvolvimento, o que amplia o dano gerado pelo ar poluído e causando redução das funções pulmonares, piorando a asma, e elevando o risco de ataques cardíacos e derrames.

Na medida em que as emissões globais de CO2 decorrentes da queima de combustíveis fósseis continuam aumentando (alta de 2,6% entre 2016 e 2018), o suprimento energético fornecido pelo carvão está crescendo (alta de 1,7% no mesmo período), o que reverteu uma tendência anterior de queda no uso desse material. As mortes prematuras relacionadas com material particulado PM 2,5 permanecem estagnadas em 2,9 milhões em todo o mundo. O carvão contribuiu para mais de 440 mil mortes prematuras por PM 2,5 em 2016, e provavelmente mais de 1 milhão de mortes se considerados todos os tipos de poluentes.

Isto pode ser apenas a ponta do iceberg, dizem especialistas. Se a Europa experimentar contaminação por PM 2,5 nos níveis de 2016 ao longo da vida inteira da atual população, as perdas econômicas e os custos de saúde de doenças relacionadas a poluição do ar, bem como as mortes prematuras causadas por ela, pode chegar a € 129 bilhões por ano.

Ao longo da vida adulta das crianças de hoje, os eventos climáticos extremos vão se intensificar

Mais tarde em sua vida, uma criança nascida hoje pode sofrer risco elevado de experimentar enchentes severas, secas prolongadas e incêndios florestais. Desde 2001-2004, 152 de 196 países experimentaram um aumento no número de pessoas expostas a incêndios florestais, com um peso financeiro per capita cerca de 48 vezes maior do que em enchentes. A Índia sozinha assistiu a um aumento de 21 milhões de pessoas a mais expostas a eventos climáticos, e a China, cerca de 17 milhões, resultando em mortes diretas e doenças respiratórias bem como a perda de seus lares.

O ano de 2018 foi o 4º mais quente já registrado pela ciência. Nele, tivemos impressionantes 220 milhões de pessoas, na faixa acima dos 65 anos de idade, expostas a ondas de calor do que em 2000; em comparação com 2017, o aumento foi de 63 milhões. Na Europa e no Mediterrâneo Oriental, habitantes idosos sofreram problemas crônicos relacionados com o calor, tais como derrames e doenças renais. No ano passado, o Japão teve 32 milhões de pessoas expostas ao calor, o equivalente a quase todas as pessoas com mais de 65 anos no país.

Ondas de calor mais frequentes e mais prolongadas irão redefinir a capacidade de trabalho em todo o mundo, alerta o relatório. Em 2018, cerca de 45 bilhões de horas adicionais de trabalho foram perdidas devido ao calor extremo a nível mundial, em comparação com 2000.

Precisamos de ação urgente para proteger a saúde das próximas gerações

Para o Dr. Richard Norton, editor-chefe da The Lancet, a comunidade médica em todo o mundo precisa se mobilizar. “A crise climática é uma das maiores ameaças à saúde da humanidade hoje, mas ainda não vimos os governos atuarem da forma adequada para confrontar esse desafio”, diz Horton. “Com o Acordo de Paris entrando em vigor plenamente em 2020, não podemos permitir essa falta de engajamento. As comunidades profissionais da área da saúde, desde a pesquisa até a clínica, precisam se unir agora e desafiar os líderes internacionais para que eles protejam nossas crianças contra essa ameaça”.

Se conseguirmos viabilizar as metas do Acordo de Paris, que limitam o aquecimento global em níveis bem abaixo dos 2ºC, uma criança nascida hoje no Reino Unido pode ver o fim do uso do carvão em seu 6º aniversário, com o crescimento da energia solar e eólica, resultando em um ar mais limpo em todo o país.

Espaços verdes

Na França, os últimos automóveis a gasolina e diesel seriam vendidos quando essa criança estivesse completando 21 anos de idade, em um cenário no qual as cidades teriam mais ciclovias e espaços verdes e saudáveis. Ao redor de seu 31º aniversário, uma criança nascida hoje poderia ver o mundo chegar às emissões líquidas zeradas, o que garantiria um futuro mais saudável para as próximas gerações, com ar mais limpo, estoques de água potável maiores e alimentos mais nutritivos.

A despeito da escala desse desafio, o relatório oferece alguns motivos para um otimismo cauteloso. O crescimento das renováveis representou 45% do aumento total na geração energética em 2018 (27% de fontes eólicas e solares), enquanto o uso de eletricidade para transporte de passageiros aumentou 21% em todo o mundo entre 2015 e 2016. Além disso, a eletricidade de baixo carbono representou em 2016 cerca de ⅓ da geração elétrica total.

“Acabar e reverter com a perda das florestas tropicais e comprometer-se com o fim do uso do carvão serão chave para que o Brasil consiga atingir suas metas dentro do Acordo de Paris, bem como proteger a saúde das gerações futuras”, diz Dra. Floss.

Ações ambiciosas

Os autores do The Lancet Countdown pedem ações ambiciosas para reverter a tendência de enormes impactos da mudança do clima sobre a saúde em quatro áreas-chave:

  • Viabilizar o abandono rápido, urgente e completo do carvão em todo o mundo.
  • Garantir que os países mais ricos cumpram seu compromisso internacional com financiamento climático de US$ 100 bilhões anuais a partir de 2020 para ajudar os países mais pobres.
  • Aumentar o acesso e a eficiência dos sistemas de transporte público, a preços mais baixos, com foco no modal cicloviário e pedestre, com a criação de ciclovias e sistemas de aluguel ou compra de bicicletas.
  • Realizar investimentos grandes na adaptação dos sistemas de saúde para garantir que os danos da mudança do clima sobre a saúde pública não superem a capacidade dos serviços de atenção médica e emergência de atender seus pacientes.

“O caminho que o mundo escolher hoje marcará o futuro de nossas crianças de modo irreversível”, diz a co-autora do relatório Dra. Stella Hartinger, da Universidade Cayetano Heredia (Peru). “Precisamos ouvir os milhões de jovens que lideraram as greves climáticas neste ano e que pediram por ação climática. Esse é um trabalho que envolve a todos nós, para garantir que a saúde de uma criança nascida hoje não seja afetada por um clima em transformação”.

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